As formas breves, dramoletes (mistura de drama com omeleta) contam de modo incisivo – será a sua característica, uma focagem temática mais aguda e concentrada – o que se passa na visão de uma certa população alemã (e europeia) que, face à actual mobilidade social, à emigração e aos estudantes e aos seus supostos desmandos (estamos nos anos oitenta) reage negativamente e procura uma ordem que a história negou no regresso ao poder nazi. As cabeças de algum modo diagnosticadas, nos três primeiros dramoletes particularmente, pedem a reinstauração de uma ordem que é assassina e violenta, uma ordem campo de concentração, uma ordem nazi.
Estamos perante criaturas para quem o modelo de uma sociedade supostamente ariana, nacionalista e militarizada, globalmente policial, é o modelo ideal, um modelo que sobrevive como um fantasma assombrando a chamada Europa democrática.
E se é verdade que de algum modo estamos perante uma impossibilidade histórica, a de um regresso no tempo a tempos absolutamente anti democráticos, não é menos verdade que a sociedade de consumo de massas vem paulatinamente recuperando lógicas que são autoritárias de um outro modo, pelo carácter massivo e pela insignificância do humano, pela instauração de um outro tipo de barbárie, a barbárie do mesmo, a barbárie de um modo de vida homogéneo disfarçado de respeitador da diversidade e do outro.
Nas peças faz-se o retrato próximo de uma população enclausurada no cliché nazi e se nos dois primeiros dramoletes (Um morto e O mês de Maria) as figuras parecem perdidas e paradas no tempo de uma sociedade rural e de vizinhos, já na terceira peça (A partida/o) as criaturas são reconhecíveis, são próximas e urbanas, sendo que a atitude violenta é a mesma mas aqui virada não contra o estrangeiro (o turco) mas contra o estudante (alemão). Não esqueçamos que estamos em período de lutas estudantis, anos oitenta, e que então os estudantes eram politizados.
Na última peça entramos definitivamente numa sociedade, a sociedade do espectáculo, a sociedade da virtualização do real, uma sociedade em que todos são actores, actores nas suas funções e numa fusão entre os seus papéis sociais e a construção de uma imagem mediatizada, uma imagem de celebridade, ela própria um jogo de aparências e uma mais valia capitalista. Estas pessoas têm um preço de mercado e não é por acaso que, neste momento, em Portugal por exemplo, se fala de uma lei do enriquecimento ilícito aplicável em particular aos que circulam nos territórios dos poderes, estrelas televisivas, empresários e políticos.
Na realidade o nosso espectáculo fará um caminho que vem do mais arcaico para o mais pós moderno, do mais vicinal para o mais complexo e virtual. Se nas primeiras duas peças estamos na aldeia, na relação directa, entre conhecidos directos, na terceira estamos na periferia da grande cidade e na quarta no mundo virtualizado global.
O espectáculo caminhará portanto para o nosso tempo, desde os figurinos e do cenário aos comportamentos.
Mas mesmo nas primeiras peças a presença sinalizada do outro, turcos e jugoslavos, significa que mesmo ali tudo muda, o que traz inquietação àquelas pessoas que viviam para um tempo antigo, anterior, um tempo dos pais, de outra ordem, um tempo que é nostálgico e que implica um comportamento mórbido.
A terceira peça é mais cinematográfica e não é por acaso que toda ela se passa na cama e à volta da pulsão sexual da mulher, de um desejo sexual para o qual o marido, a ver futebol e na ressaca de um episódio violento de rua, parece indisposto de tal modo está dependente da “bola”.
Já na quarta peça a falsa “democratização” que o jogo propõe, colocando os políticos no lugar de uns quaisquer concorrentes pelo tempo do concurso, faz parte das regras massivas do jogo democrático, eles têm de se parecer com os demais, com a populaça, mesmo sendo as mais altas figuras do Estado.
E é este percurso, esta conjugação de mundos e de épocas, que nos interessa para falar do nosso mundo, mundo homogéneo, unificado pelo ecrã, mas mundo de anacronismos em que convivem tempos e ordens diferenciadas, com mundos que se apagam, a agricultura tradicional, e mundos que não se sabe o que serrão, esta espécie de generalização dos comportamentos virtualizados a que assistimos num universo de discoteca global. Um mundo em que as pessoas cada vez mais imitam os seres televisivos, as marcas, as dietas, o pacote de férias, o automóvel, a casa, o número de filhos, os divórcios, o lado absolutamente descartável para que a condição humana parece despertar imitando a mercadoria.
Será assim?
A nós interessa-nos juntar a esta visão que as peças parecem conter um caminho que estilisticamente venha em direcção a um certo grotesco. Na última peça e depois de passarmos por uma espécie de “teatro do quotidiano”, através de uma imagem algo cinematográfica, estamos perante uma representação em que o árbitro do concurso televisivo, o crítico, é um cão pequinês ao lado de um anão. Esta descida à exploração de uma certa monstruosidade em cena, expondo-a com exibicionismo explorado, aponta para um comprazimento não só com o monstruoso mas com uma estupidificação irracional da vida submetendo-a a regras que de tão básicas significam uma regressão do humano para os limites da demência e de um primitivismo lúdico abjecto, que procura o êxito na abjecção como que atraído, em nome da velocidade, esse imperativo que ninguém põe em causa e que na televisão é um dogma, que impõe de facto comportamentos imbecis e barbaramente primitivos.
Viajamos portanto nas quatro peças por vários teatros, desde um certo drama de traços realistas a uma realidade grotescamente espectacularizada.
Fernando Mora Ramos
26 maio 2009
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